O pincel, ligeiramente embebido em aguarrás, perscrutou indeciso as cores da palete de madeira, suja e gasta e usada, que segurava habilmente na mão esquerda, moldada à sua forma há mais anos que os que a sua imaginação se atrevia a pintar. Era comum ver-se hipnotizado em frente à tela vazia, branca, estrategicamente colocada em cima do cavalete, à altura certa do seu braço assertivo. Os borrões de tinta, cautelosamente dispostos por ordem de maior uso, salpicavam alegremente a sua vista. Fechou os olhos, procurando encontrar a veia, o fio condutor de uma ideia para transformar em arte. Considerava-se um artista sem musa, um inventor de musas ao caiar do momento, todas eram tão belas e capazes de o inspirar que por vezes o difícil era escolher a melhor perfeição para pintar. Mas, naquela manhã de tonalidades escuras, nuvens negras e sarrabiscos de breu, a imagem de uma só, preencheu-lhe o pensamento. Havia-a conhecido acidentalmente, havia-a conhecido propositadamente quando ela lhe abriu as portas do seu mundo. E, inadvertidamente, o pincel ganhou vida própria e começou a desenhar o seu retrato em pinceladas tão vigorosas quanto o tinha sido o seu amar. Lábios grandes, que adorava afastar para beijar, curvas acentuadas que deliciavam o seu tocar, proeminências intumescidas pela sede de uma boca perfeita, o aroma doce-almiscarado que desenhava em nuvens dissipadas pelo querer, o ponto de entrada de prazeres e desejos, cada vez mais aberto pelo seu preencher, o rasgar das suas entranhas pelas palavras ditas a quente e devolvidas em beijos ácidos na pele. Sentiu, em cada pincelada, uma estocada, sentiu em cada misturar de cores, o misturar de sabores, sentiu em cada esborratar, um lamber, sentiu em cada borrão deixado, a textura do seu prazer, sentiu em cada escorrer de tinta, o seu escorrer, sentiu em cada toque na tela, um espasmo tingido de paixão, sentiu no retoque final, o momento de um desesperado culminar. Fê-la perfeita, tão perfeita no retrato como no rosto de orgasmo proporcionado. Teve-a toda, numa entrega tão grande que a aprisionou na tela para nunca mais a deixar escapar de si.
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